domingo, 3 de maio de 2009

"Galhos não se movem sozinhos"


Veró atropela um cachorro enquanto volta para casa. Esse é o ponto de partida da obra mais recente de Lucrecia Martel, "A Mulher sem Cabeça". A própria diretora, assustada com a reação negativa dos espectadores no Festival de Cannes do ano passado, afirmou tratar-se de seu filme mais explícito. De fato, seus sentidos talvez sejam tão óbvios que se pode traçar um paralelo entre os personagens e os espectadores que, enfurecidos, acusaram ao fim da projeção a artista de não ter chegado a lugar nenhum. É um estado de acomodação, de analfabetismo emocional e, por que não, de cegueira que não se espera de gente que se aventura em obras como essa, cuja única exigência é o comprometimento com a visão da personagem, uma maneira de enxergar que sofreu um forte solavanco e se posicionou em um lugar diferente.


Esse lugar que foi esperado e nunca chegou, porque estava ali, logo nos primeiros minutos, quando o acidente parece fundir as duas realidades distintas às quais somos apresentados antes mesmo de conhecer Veró: crianças brincando; a classe baixa ao ar livre e a classe média presa dentro de carros. Martel não joga conosco, desde a comparação óbvia entre os limites pré-estabelecidos para a juventude de acordo com o meio em que nascem, até a imagem perfeitamente nítida do cachorro atropelado deixado para trás, é um conjunto de elementos claros que geram nessa mulher que já viveu metade de sua vida uma enorme perplexidade quando são percebidos em sua totalidade. A partir do momento em que um cachorro fica indefeso diante de um carro, como também ficaria uma criança.


A perplexidade - que em muitos momentos se transforma em culpa - é o único guia do espectador, o sentimento de perceber que faz parte de um grupo que simplesmente nasce com privilégios, não os conquista e nem talvez os mereça, um grupo que é servido por outro para o qual essa relação de servidão parece ser a única alternativa e a encara sem sofrimento ou revolta, apenas como a própria natureza das coisas. Tamanha é a sofisticação de Martel como autora e de María Onetto como atriz, que conseguiram transformar essas descobertas do óbvio numa jornada psicológica minimialista que vai muito além - na forma e no conteúdo - da tradição latina de filme social.

Um comentário:

  1. Nossa, que texto lindo! E nem fez mal ter lido antes de ver(como você viu, me arrisquei), fez muito bem e me deixou foi alvoroçada pra ver isso. O Cinema da Martel é político como poucos, porque entende o entranhamento de certas coisas da vida. Quero ver!! Brigada por me passar isso...

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